Sobre a paternidade

Sergio Trentini
4 min readOct 25, 2018

Há quem se perturbe com o objetivo final do ato de escrever. Se escrevo para satisfazer o espírito do leitor ou para acariciar minhas próprias obstinações estéticas. A verdade é que não faz diferença. Minha justificativa é uma severa platitude: escrevo porque escrevo. E se não o faço, deixo de alimentar uma parte crucial de quem sou. Isso gera uma reação em cadeia interminável que culmina em grunhidos mal-humorados ou em uma ansiedade estroboscópica que pisca vinte e cinco pensamentos por segundo por saber que minh’alma carece de alimento. Digo, tenho um objetivo ao iniciar a escrita, mas ele é, usualmente, por hábito da minha profissão, o de comunicar algo a um determinado público. Existe um formato a ser seguido e a liberdade criativa varia de forma tímida dentro de um jogo de padrões estilísticos. Outras vezes, quando faço isso sem remuneração (estritamente financeira), o texto pode surgir com uma ideia específica ou sem rumo algum. Ou ainda: surgir com uma ideia específica e começar enviesado. As palavras que escrevo agora se sobrepõem à ideia que tive ao começar o texto.

A ideia aqui é escrever sobre a paternidade. Mas, assim como o início de um texto, a paternidade, às vezes, surge de forma inesperada.

Ser pai ou se tornar pai?

“Agora, sim, tu te tornaste um pai de verdade”, foi o que ouvi de uma conhecida durante a festa de aniversário de uma pessoa em comum. A resposta que transmiti com a minha expressão facial não deve ter sido das melhores, afinal, a pessoa logo pediu desculpas. Mudei de assunto. Perguntei o que ela estava fazendo da vida por aqueles dias. Mas, não esqueci de imediato do que ela falou, não por ressentimento. Ouvir aquilo me fez refletir por muito tempo.

Essa pessoa e eu tínhamos uma coisa em comum que lhe permitiu falar aquilo. Na época do acontecido, utilizávamos muito o recém-lançado recurso Stories do Instagram. Minha intenção, ao gravar alguns quinze segundos dos dias que passava com a minha filha, eram o de tentar transmitir algo de bom, iluminado, ainda que por um instante, para amigos e amigas por quem tenho apreço e que me seguem na rede.

No entanto, aquele compartilhamento por maiores e mais espaçados períodos, deu a ela a impressão de que eu estava sendo mais participativo na vida da minha filha. No início da vida da criança e, principalmente, durante a gestação da Sofia, eu tive uma participação mínima. O que muito atribuo à imaturidade que gerou conflitos e falta de diálogo entre a mãe dela e eu. Águas passadas. Passou o tempo em que eu lamentava diariamente e alimentava a culpa de não ter assistido o parto da minha filha. A experiência de ter passado desde às 7h da manhã até quase 20h na sala de espera do hospital aguardando para conhecer a minha filha através de um vidro, por muito tempo me incomodou.

Todavia, assumamos os erros. Aceitemos o passado.

Desde o início da vida da Sofia, eu quis estar mais presente. E para isso, foi um passo de cada vez. Hoje, a mãe dela e eu, temos um acordo amigável, conversamos sobre as rotinas da Sofia para que não se alterem os hábitos de uma casa para a outra e dividimos o tempo da semana com a pequena.

Construir esse diálogo não é tarefa fácil. E há vezes em que ainda podemos nos desentender. É importante perceber que isso é absolutamente normal. Uma vez um amigo me disse que alguns ressentimentos são insuperáveis. Por algum tempo, concordei. Até perceber que o amor de uma criança pode reverter qualquer jogo, a pureza de uma criança pode nos fazer melhores.

“Agora, sim, tu te tornaste um pai de verdade”. Isso me fez pensar em duas coisas:

1) estamos atrelados à inconsequente percepção de que se não está nas redes, não é verdade. Afinal, aqueles quinze segundos que compartilhava, eram momentos lúdicos, felizes, em que cantava “minha pequena Eva” com a minha filha, ou no dia que tentei maquiar ela para ir ao balé e a minha completa falta de destreza se mostrou tão cômica que tive o ímpeto de gravar, para que rissem comigo da minha cara — ao que fui surpreendido pela pequena ao dizer “tu tá indo muito bem, pai” sobre a pintura que eu estava fazendo nos olhos dela. Eu me derreti. O incentivo nítido de um amor puro. Um amor que não espera nada em troca. Uma criança só quer amar e ser amada.

2) O que é ser um pai de verdade? É isso? Tocar o celular na cara de sua filha em momentos íntimos de felicidade? Não acredito que seja isso. Hoje, compartilho menos conteúdo, apesar de, em tempos em tempos, colocar uma ou outra foto, pois, realmente, tenho muitas pessoas queridas naquela rede. E postar uma atualização, às vezes, tem como consequência uma conversa com alguém que não falava há tempos. Obedecendo os limites do próprio ego. Acredito, sim, no compartilhamento de pequenos momentos felizes e que possam iluminar dias alheios. Todavia, ser pai não é isso. Tornar-se um pai de verdade passa longe disso.

Estar presente, observar os ritmos, amparar, acolher, ensinar, aprender, amar um amor transcendental, sentir a mais simples felicidade, sorrir por nada, dar gargalhadas por uma sílaba trocada em uma palavra qualquer, carregar no colo, na cacunda, levar na praça, aguentar o cansaço, ter paciência, perseverar, aprender mais, respeitar, entender os próprios defeitos, estudar a si mesmo, compreender as próprias emoções, servir de guia, instigar, maravilhar-se, entregar-se, abraçar, aceitar as fases, estudar as fases, falhar, aprender, amar. Aprender a amar. Talvez, em linhas gerais e num fluxo de consciência, essas palavras-chave indiquem o que eu entendo por ser pai. Nenhuma descrição, nem mesmo essa que inicia o parágrafo, será suficiente.

Como disse antes. Escrevo porque escrevo. E sou pai porque sou pai. Senão o fizesse e senão o fosse, eu não seria quem sou.

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