QUATRO
O que você acha desse chapéu de caubói?

Sergio Trentini
11 min readDec 28, 2021

(trecho de um livro inacabado)

Aquele lugar era, a partir de todas as experiências pessoais cifradas — e digo cifradas, pois seu ambiente etéreo bagunçava mesmo os pensamentos da pessoa mais racional -, um lugar dotado de feitiçaria; permeado por uma mistura de ansiedade do predito êxtase e do ataque às narinas pela consequência de incontáveis perfumes e cheiro de fumaça de diferentes sabores de cigarros que saíam pelas janelas dos apartamentos dos primeiros andares. Foi lá que eu conheci a Letícia e o diabo.

A rua não tinha mais do que trinta prédios, quinze de cada lado. Todos tinham o acesso através de pequenas portas laterais às lojas, em sua maioria, de manutenção de celulares e de roupas de baixo custo. As pequenas portas laterais às vitrines conduziam à escadas, e essas escadas conduziam a corredores com dez portas de cada lado e essas portas conduziam para onde os homens buscam clandestinamente e inconscientemente alinhar aquilo que percebem por corpo e aquilo que entendem por alma: os quartos das prostitutas.

Depois, eu me tornaria uma pessoa com medo do barulho, mas, naquele tempo em que eu respirava orgulhoso uma vez depois da outra, eu, por algum tipo de influência inconsciente que nutria pelas histórias do meu avô, ou por algum fator genético, ou porque eu quis, me tornei uma pessoa não muito agradável. Ruim mesmo. O caos da sobrevivência era tão desagradável que eu me contentava com pouco, pouco mesmo. Botecos de fim de vida, cercados por velhos que amanheciam por ali, comiam um pedaço de pão com manteiga e continuavam a bebedeira da noite anterior. Suas casas eram as suas cadeiras de metal ou de plástico. Conversávamos como se fossemos íntimos e nos abandonávamos como se nunca mais fossemos nos ver.

Eu não morava naquelas cadeiras. Eu tinha um carro. E só. Eu também tinha perdido o emprego para pagar a cachaça, trabalhava como motorista de aplicativo durante algumas horas da noite. Pegar e soltar pessoas é uma coisa fácil quando você não se importa com o material humano do banco traseiro. Simples, simples. Contudo, com algumas regras. Mantenha sempre os vidros abertos, e nunca encare ninguém nos olhos. Também nunca ninguém fez questão de me olhar e, muito menos, me pediu para ligar o ar. O cheiro de cachaça saía pelos meus poros. Só não era insustentável porque era uma época de máscaras faciais, era uma época de vírus, como eu. Quanto a minha nota, você pode se perguntar. E eu não me darei o trabalho de responder que não me importava. Aquela história toda de um subversivo entusiasta da própria miséria e caos. Não recebi uma chamada para atender uma corrida na zona de baixo meretrício, que era como formalmente chamavam a rua dos puteiros, eu fui dragado para aquele vórtice de lamúria extenuada. Aceitei a chamada. Eu sabia para onde estava indo. E alguma coisa dentro de mim sabia que eu passaria um bom tempo indo lá.

A corrida se desenrolou da seguinte maneira. Ela, uma mulher de meia altura e com um vestido apertado demais para o seu corpo e seios, desceu as escadas em direção ao carro como se mancasse em cima daqueles saltos altos. “Boa noite”, eu disse por protocolo, e não recebi resposta nenhuma. Ora, como se qualquer um de nós se importasse.

“Essas merdas de sapatos”, ela falou, e, sem convite, seguiu num discurso inflamado:

“Perto de nós, mulheres livres, vocês homens tendem a tremer. O status anárquico da forma como conduzimos a vida nos apresenta uma possibilidade que é muito nos contradita desde o nascimento: de que não precisamos de vocês, ó gloriosos deuses da natureza, senhores da verdade, abismos inteiros de sabedoria e rigor moral.”

Fiquei calado.

Seu destino foi um apartamento na rua Riachuelo no Centro Histórico de Porto Alegre. Antes de descer do carro, ela me ordenou que voltasse diretamente àquela zona e procurasse pelo prédio 2 e entrasse no apartamento 1005.

Ato contínuo, bati na porta e um homem de chapéu de caubói me atendeu. Elegante, excêntrico e inusitado o suficiente para o tanto de álcool ainda absorto em meu cérebro. “Sente-se”, ele disse. “Sento-me”, falei, rindo. E ouvi.

“Seu avô não era nenhum miserável, nunca foi um companheiro à altura, mas era um sujeito ótimo. Era apenas um humano, daqueles que gostamos de passar um tempo. Um homem de ondulações que vinham de marés contraditórias. Isso sempre me fascinou, pois tais ondulações em um ser humano podem valer mais do que a própria alma. Eu sei porque desde o primeiro dia em que vi a relva, quando comecei a vagar, entendi que andaria pelas hortas, as que nasciam já mortas e as que resultavam em colheitas vigorosas de flores e frutos e cores e, vejam, vejam! Vejam a felicidade dos pescadores que não se atiraram mais ao mar porque na terra, nas suas terras, tinham sossego e podiam, inclusive, ouvir música e cantar e alguns até gritavam para que as mulheres lhes alcançassem o fumo que estava no bolso do paletó pendurado atrás da porta do quarto, e gritavam também que o filho, aquele preguiçoso, viesse logo para ajudar, que a comida não chega no prato sozinha. Sabia que andaria por tudo e que andaria por tempo indeterminado. A moléstia e a virtude. Deserto, selva, fundo do mar, acima do mar também, num barquinho, também sem o barquinho, boiando por dias, e nas estradas, avenidas, no chão de terra batida, em campos livres, cidades, províncias, e em todas as regiões daquele ambiente desconhecido nos mapas e nas pegadas da civilização e que por não terem por perto nenhum bípede com mania de batizar a torto e a direito, ainda carecem de nome, sem nome, mas não sem meu entendimento. E não, isso não foi nenhuma maldição do Senhor. Ele e eu nunca mais nos cruzamos, Ele sabe de mim e eu sei Dele, e assim por diante. Não medimos forças. Ele sabe que vaguei e vi e vivi e busco continuar vivendo. Não sou dono de governo de lugar nenhum. Nem ambicionaria, ora, ora, um espaço delimitado subterrâneo para abrigar as almas dos mortos; não, nada disso de ambiente dedicado ao suplício eterno dos condenados; nada de sementes de lava em um rio inavegável. Não se engane, existe, sim, o tormento e existem, sim, e muitas, almas que negociei, mas o inferno é todo esse mundo, e os pecadores estão todos aqui no meu bolso direito. E isso eu trato apenas como figura de linguagem. Dele, Deus, eu sei lá, nunca mais ouvi. Jamais blasfemaria dizendo que se sentou num trono e passou a se preocupar com as tempestades e os terremotos e as pessoas mortas, com as degradações crescentes do planeta, com a total consciência da angústia da vida dos humanos, com os filhos que assassinam os pais e com as mães que abandonam seus filhos, com a imperfeição autodevastatora dos relacionamentos que nunca deviam ter começado mas que nunca terminam. Isso, e todo o resto, não é nossa responsabilidade. A influência Dele sobre isso, assim como sobre mim é pouca. Talvez um dia Ele passe por mim e acene com a cabeça, é um camarada educado, deve ter lido todos os livros de etiqueta que estão disponíveis nas bibliotecas e no google e na mente dos escritores dos livros de etiqueta; passando por mim, talvez ele pergunte como tenho ido, como tenho passado o tempo; e eu desconversarei, e Ele sabe, mas perguntaria da mesma forma, por educação, sempre; Ele é um cara educado. Isso de que me expulsou do céu, até parece. Olha, Ele nunca nem me apontou um dedo em direção a lugar nenhum, não vá atrás dessas histórias. Eu vagava, sempre vaguei, aí um dia voltei aos céus e disse a ele que de tudo tinha visto e de tudo sabia; e ele disse, tudo o que ele disse foi: ‘pois que volte e vague mais dois milhões de anos e que veja se é isso mesmo, e que se for isso mesmo, volte e me conte’. Voltei e cá estou, vagando. Empenhei-me em detalhes. Você já ouviu a frase de que o Diabo está nos detalhes. Nenhum clichê se torna clichê antes de passar pelo Diabo, disso pode ter certeza. Já fui cauteloso e agressivo, já fui mãe e pai — e ao mesmo tempo — já fui divindade em traje de guerra e já fui aquele pintado com os chifres; já fui a mulher mais bonita do mundo, já fui simpático e encantador, bem como avesso e contraditório, já condenei e perdoei, já zombei de quem sofria e já dei tapinhas paternalistas nos ombros de quem estava perdido; Envolvi-me em partículas infinitas de pequenas melodias de canções. Fiz arte, muita arte boa, nunca fiz arte ruim, de algumas, aquelas que guardava para meu consumo pessoal, forneci, mas cobrei um preço. Nenhum deles foi coitado, desses que fiquei com a alma em contrapartida. Não, não pense isso, nem pense tão rápido. A beleza está em não pensar. Sim, tenho orgulho das ideias espetaculares, dos melhores livros, dos melhores discos, pasme, inclusive, do melhor versículo da bíblia. Quando João escreveu, transcrevendo Jesus “eu sou o caminho, a verdade e a vida e ninguém vem ao Pai senão por mim.”, fui eu que coloquei a mão, figurativamente, na testa dele. João era um sujeito e tanto. Mesmo nome do seu avô, aliás. Seu avô era um camarada espetacular. Não tinha nada demais, e por isso tinha tanto para me oferecer. Jeremias, José, Pedro, todos eles, fui eu que fiz com que louvassem o Senhor em sentenças tão belas que o próprio Deus jamais ousou desconfiar da devoção desses homens. Ora, sou muito mais simples do que me pintam, todavia, sou muito mais complexo do que consigo te explicar. Contento-me com pouco. Gostaria de falar dos observatórios e dos anéis espiralados de Saturno, contudo, nunca quis ir tão longe. Aqui está o meu fascínio. As estradas de chão pelas quais conduzi garotos e homens e mulheres e cabras para louvar a palavra de um exu ou coisa parecida, no fim acabaram todos afogados ou em lágrimas, ou nos riachos, ou na própria religião. Mortos não me interessam. Almas, sim. Por óbvio. Nenhum clichê se torna… Bom, você pegou a ideia. É esperto como o seu avô. Esperto e ruim como o velho. A pregação fervorosa para roubar almas me aplacou por um tempo. Depois, gostei também de todas as quartas-feiras em que fiz chover para ver pessoas escorregarem e caírem de cabeça para morrer. A Morte e eu tivemos um relacionamento duradouro, mas passamos tempo demais juntas e enjoamos. Decidimos que cada um com o seu ofício, decidimos que ela pra cá e eu pra lá, e cá estou eu, sentado no quarto 1005 conversando com o neto do homem que lutou comigo por seis noites e cinco dias. Eu quero te contar essa história, porém tenho tanto para te contar, quero te falar desse toque alaranjado do pôr do sol e dessa cor púrpura que você enxergava refletido através dos ladrilhos da casa da tua mãe. Eu quero te contar do amanhecer calmo da Terra e de como se constrói uma aurora gradual e solitária. Da intranquilidade dos homens de casas de telhas de zinco baratas diante da tormenta; da intranquilidade das mães que escutam suas crianças com a barriga roncando de fome; das crianças que param a beira de uma curva, olham para dentro de um carro blindado e pedem para uma família qualquer que a levem. Novidade: eles não levam. Quero te contar de homens que enterram o pai nos fundos das casas, como tu enterrou o teu, vomitando em cima do cadáver; quero que você saiba que minha mão estava em cada pá de terra que você tirava daquele canteiro, mas não sou ruim. Sou apenas o avesso de qualquer coisa. Não que eu procure ser isso, apenas o sou. Eu sei abater um boi, retirar os ossos, separar os órgãos, fazer bifes e fritar para alimentar uma nação, mas que graça tem isso? Sei curar com raízes silvestres doenças que ainda nem os atacaram, mas não o faria. Satanás é o avesso. Eu adoro os nomes que vocês me dão. Confesso que prefiro o Cão. Um animal tão dócil, tão aprazível, tão evolutivamente adaptado para estar próximo de vocês. Eu não te fiz ruim, e nem você é ruim. Eu não sei o que acontece contigo daqui por diante. Eu sei tudo sobre as estruturas internas da terra e todos os processos da superfície dela. Sei o caminho a pé daqui até o monte vesúvio; sei as tuas próprias memórias, principalmente, as que você esqueceu; sei como será o suave arco que o sol percorrerá por todos os dias deste ano e de todos os outros que virão; sei que não existem os anos; sei como funciona o tempo e como funcionam os específicos neurônios queimados dos budistas e dos cheiradores de cola, e, cá entre nós, eles são mais parecidos do que deveriam ser; sei das comorbidades que podem atingir um ser humano e as que podem atingir uma formiga; sei como aniquilar todas as baratas, mas elas nunca me fizeram mal; sei olhar sob diferentes ângulos para cada letra desse alfabeto e sei falar todas as letras de todos os alfabetos de trás para a frente, mas quando que isso foi interessante? Não é que após tantos anos eu tenha cansado, não é que eu tenha me interessado demais por ti ou por teu avô, mas foram brigas justas para os anos 50 quando tudo o que me ocupava era beber alguns bons uísques e me situar em alguma cidade provinciana aleatória. Osório. Que bela merda de cidade. Tinha um lago e tinha uma série de ladrões de fios. Os mesmos caras que instalavam os fios, voltavam à noite para roubá-los e revendê-los para os mesmos caras que mandavam instalá-los. Ora, se isso não é interessante? Não, não é. Olhando em perspectiva e, sim, não me faça essa cara, eu também posso olhar em perspectiva, eu estava era bastante entediado. Um dia eu olhei esse cachorro na beira do rio e do outro lado do rio vi teu avô atirando na direção de um bando de homens. Ele acertou dois. Matou um na hora. Fiz a minha parte antes que ele pudesse perceber. Amarrei o cachorro em uma coleira vermelha, o prendi em uma árvore e atravessei o rio; nadando, óbvio, o que caminha pelas águas é o Outro; mas deverias ver como nado. Puxei o cadáver em direção ao rio e dei sumiço. No dia seguinte, apareci ao lado do seu avô, com toda a minha empáfia e o meu frio. Você não sente o frio agora, certo? Deixe-me mostrar. Essa é uma das minhas marcas registradas, e se eles soubessem das outras, aproveitariam melhor seus adjetivos, pois tenho tantas. Que tal? Sente? Frio mesmo, né. Eu digo que não é nem frio, é outra coisa. É isso. Pronto, cessei. Outra hora te mostro outras coisas. Pegue esse pote que está em cima da mesa e saia. Antes, me diga, o que acha desse chapéu?

“Ridículo”

Ele riu. E foi a risada mais agradável que já ouvi. E, de repente, ele era a mesma mulher que eu acabava de largar na rua Riachuelo. Aproximou-se de mim, agora sem os saltos, e seu perfume me seduziu como nenhuma cachaça conseguiria. Ela sentou em meu colo e meu pau enrijeceu. Imediatamente grudei as unhas nas costas dela e a puxei para mais perto. Ela cravou os dentes em meu pescoço de forma suave enquanto gemia. Recobrei os sentidos e a empurrei com força. Ela se desequilibrou, bateu com a lombar no marco da janela e, em câmera lenta, observei, sentado, as suas pernas se erguerem, seu cabelo balançar, de baixo para cima e da frente para trás, para a sua queda do décimo andar em direção ao térreo. Eu sempre me perguntei se de uma altura daquelas a pessoa morre de medo no meio do caminho ou se morre apenas com o estupor de seus membros se planificando ao asfalto. Mas naquele momento, ainda enquanto ela caía, eu me perguntei por que diabos eu estava no prédio onde a havia deixado e não sentado em frente ao Diabo na zona de baixo meretrício.

Então, eu ri. Ri muito. Ri com um catarro na garganta que emula um fusca que não consegue pegar, que nunca pegaria, que sequer tinha arranque. E foi assim que ganhei a primeira luta contra o Cão.

Mas na mesa de centro do apartamento tinha um pote. O mesmo pote que ele havia me apontado na outra sala.

Unlisted

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