Sergio Trentini
5 min readMar 14, 2018

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Nas junções de rua que o pessoal de humanas adora fazer nos bares com “litrão a 10 pila” — e colocam com fervor essas palavras na boca “litrão a 10 pila” como se fosse a maior promoção do universo — se estou de terno, preciso fingir descontentamento, vestir a minha melhor cara de insatisfação. Preciso suspirar desgostoso a cada trinta segundos e deixar as pálpebras meio pesadas cobrindo metade dos olhos vermelhos — que estão assim por conta do ressecamento efeito do ar-condicionado em atrito direto com o material plástico das lentes de contato, mas que, para eles, deve ser de chorar escondido no banheiro do escritório. Só assim me aceitam. Só assim, uma guria montada numa bike fixa que deve custar o dobro do meu salário, chega perto e invariavelmente pergunta: por que tu ta vestido assim? Eu entro fundo no personagem. Meto os dois pés no lamaçal da incongruência de uma versão mais nova de mim que mesmo possuindo emprego achava desconfortável e despropositada a rotina. Agora, sei do propósito da rotina e do valor que posso atribuir a ela. Tanto o monetário quanto o de continuar me mantendo ocupado. Sou a formiga que trilha diariamente o mesmo caminho, mas, volta e meia, se desloca do bando e vai para lados que nem sabe quais são, mas acha importante ir. Como, hoje, por exemplo. Faltava um real para que eu pudesse pagar a passagem. Mexi nos bolsos de outras calças atrás de moedas. Sem sucesso. Decidi caminhar até o supermercado mais próximo, o Gecepel do Morro Santana, aquele descendo a Protásio Alves. Uns dois quilômetros a serem percorridos de sapato. Verão. Dia quente. Saio de casa já sem o casaco do terno e com as duas mangas da camisa dobradas cuidadosamente dois centímetros abaixo do cotovelo. Chego no mercado, me dirijo ao caixa eletrônico. Faço toda a operação. A máquina em vez de entregar o dinheiro, faz um barulho demorado como se contasse infinitas notas. Eu só queria dez reais. No terceiro minuto de espera, a tela emite, em letras garrafais, um “desculpe pelo transtorno, não podemos lhe atender”. A mensagem fazia parecer que ela estava realmente magoada comigo. Perguntei baixinho se o problema era eu e escorei a palma da mão esquerda na testa da máquina antes de tirar o cartão e colocar de novo. Dessa vez, a opção 4 — Saque havia sumido. Ok, tudo bem. Voltei a pegar as moedas do bolso e tornei a conta-las, isso tudo já saindo do Gecepel e caminhando Protásio acima. Calorão. Eu já sentia o suor entre a camisa e a mochila. Vou subir até a Ary Tarragô, pensei. Mais dois quilômetros. Caminhei com estoicismo admirável. Fones de ouvido sempre ajudam. Musiquinha tocando, tirei umas fotos daqui e dali, postei nos stories do instagram. Tudo sem fundamento, nada fazendo sentido. Cheguei na Ary Tarragô e avaliei como eram mais dois quilômetros até o próximo posto de gasolina que tinha caixa eletrônico do Banrisul. Dei uma risada de mim mesmo e me escorei num aviário para pedir um Cabify. O primeiro motorista que aceitou a corrida passou por mim e seguiu viagem. De repente, ele tinha iniciado a corrida sem mim. Liguei. O número não existia. Consegui aprender onde cancelava a corrida após algumas expedições pelo menu do aplicativo (era na tela principal, me senti um senhor). O segundo motorista aceitou de bom grado a corrida e tinha borboletas cravadas pelo teto e no painel frontal interno do carro. Ele me disse que era conhecido como Cabify das borboletas. Eu disse que aquilo deixava o meu dia mais leve, pois sabia que era o que ele esperava ouvir. “Com certeza, com certeza”, ele respondeu. Já estávamos no posto de gasolina. Agradeci e fui em direção ao final da jornada. Avistei o caixa eletrônico azul e sorri. Cheguei mais perto e percebi que a tela estava escura. Apertei alguns botões, inseri o cartão, fiz o diabo, e nada do caixa reagir. Perguntei para a moça atrás do balcão, que acompanhava toda a movimentação: “como é que liga aqui?”. “Tá desligado”, ela respondeu. “Sim, e como é que liga?”, insisti ingenuamente. “Não liga, senhor.”. Senhor. Me senti um senhor de novo. Lá vamos nós. Para quem só queria um real, eu já havia gastado oito reais num cabify até ali, caminhado quatro quilômetros e estava prestes a gastar mais 10 reais para ir até o Iguatemi. Foi o que aconteceu. No caminho, motorista calado, ar-condicionado ligado, estava tudo ótimo, comecei a sentir o suor secar. Já no shopping, procurei copiosamente o local do meu banco. Desisti de procurar, perguntei para um segurança. Ele me chamou de senhor. Terceira vez no dia. Primeiro eu, depois a mulher da loja de conveniência do posto de gasolina e agora o segurança do shopping. Achei o caixa. Saquei meus dez reais. Saí do shopping. Fui em direção a parada. Passam dois moleques por mim, com skate embaixo do braço, segurando dez reais na mão como se aqueles dez reais deles nem fosse importante, achei um desrespeito com a cédula e decidi tirar minha gravata para enforcar os dois de uma vez só, porém isso não é que coisa que se faça. Portanto, não fiz. Chegou o T7. Eu já estava suado de novo. Botei a mão no bolso para pegar os dez reais e a nota não estava lá. Coloquei a mão em todos os outros bolsos, inutilmente, pois sabia em qual bolso havia guardado os dez pila. Nada. Olhei para a cobradora. Peguei as moedas do bolso. “Posso ficar te devendo um real e descer pela frente?”. Ela me olhou torto por alguns segundos e, por fim, disse que sim. Recebeu as moedas formando uma concha com a mão. Contou as moedas. Sentei no banco destinado para idosos. Eu estava vencido, extenuado e suado. “Senhor…”, eu ouvi atrás de mim. “Só para te avisar, falta um e vinte e cinco aqui. A passagem aumentou hoje”. Dei aquele meio sorriso de quem viu um cachorro ou um bebê na rua e de automático tem uma resposta facial que se assemelha a um espasmo de fofura. Coloquei meus fones de ouvido. Apertei satisfeito o nó da gravata. Cheguei ao meu destino para sair sete horas depois e me encontrar nesse bar onde servem o litrão e as pessoas se espalham, primeiro, pelas calçadas e, lá pelas tantas, pela rua. Por que tu ta vestido assim?

Então eu olho para cima, olho para os lados e invoco a primeira máquina do Banrisul: desculpe pelo transtorno, não posso lhe atender.

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