_Coágulo

Sergio Trentini
4 min readJul 22, 2021

Tenho dois isqueiros da mesma cor. Dois Bic azuis claro. Só um deles funciona. Isso sem considerar o verbo em sua estrita forma, o que, para ser sincero — e por que não seria? Afinal, recém começo a tentar preencher um buraco vazio utilizando as próprias mãos, mas em vez de terra, tenho à disposição um conjunto de palavras. Elas são, muitas vezes, desgastadas, desconexas e desafiadas e preencher um espaço que nunca lhes coube. Eu insisto no desafio, mas, elas sabem, por mais que eu me faça de sonso, que são as donas do texto; elas que servem ao propósito de jogar com meias-verdades. Acho que o ideal seria buscar preencher os buracos, os corações e as vidas com atos que carreguem um teor mínimo de sinceridade que, pasmem, mesmo a ficção permite –, pois, por isso mesmo, voltando: para ser sincero acho uma bobagem analisar um verbo sob o peso rigoroso de seu significado para que possamos aplicá-lo em uma frase. Dessa forma, eu nunca conseguiria me expressar. Se serve de consolo, a intenção da mensagem foi elaborada, digo, a mensagem foi elaborada com a intenção de possuir toda a precisão que consigo alcançar e, veja, não tenho conseguido muito ultimamente. Quase não leio e, quando leio, leio muita coisa errada, troco palavras que nem se parecem. Esses dias, onde estava escrito “chuva”, eu li “aborto”.

Também não tenho falado muito, mas, quando falo, as palavras fogem. A interpretação analítica e a formulação do raciocínio mais comum parece estar à iminência de encontrar um coágulo ou um nódulo ou um linfoma que vai bloquear o caminho do pensamento para a fala e fazer com que eu pare, de repente, e olhe para o nada. E fique assim. Olhando para o nada. De vez em quando, olho para o nada e, pouco depois de olhar para esse suposto nada, penso que se passaram horas, mas quando volto ao ambiente em que estava antes de desviar o olhar, percebo que não gastei mais do que dois ou três minutos. E tudo continua silencioso e sem muito propósito. Acho que meus neurotransmissores se afastaram demais uns dos outros para que possam efetivar qualquer sinapse coesa. Eles também estão encontrando a solidão. Finalmente.

A essa altura, depois de tudo, não me preocupo com o que pode parecer, ou com o que será que poderias pensar que poderia parecer; A essa altura, eu disse, e olha que nem fomos longe, já deves ter percebido o caminho tortuoso e parentético do meu raciocínio. Tento aparar as arestas para além das que permanecem — e devem permanecer, penso eu — sutis nas entrelinhas. Quero falar sobre o isqueiro. Falar daquele, entre os dois que afirmei não funcionar, e ponderei sobre o rigor do verbo funcionar, e falei do quanto acho isso um tanto quanto pedante, não usei esse termo, mas era isso que queria dizer, se não o disse, agora está dito, mas aqui estou, querendo apenas dizer — e vou acelerar, prometo, pois logo me canso de mim mesmo, imagine — querendo não, eu quero dizer é que ele também funciona, ou, melhor, funcionaria, considerando que a faísca gerada pela roldana em atrito com a pedra pode ser utilizada para acender o fogão, que até é elétrico, mas está desligado da tomada desde que tomei um choque apertando o botão para acendê-lo. Nunca mais ligo um fogão na tomada. Tenho algumas certezas insípidas. E mesmo tais certezas podem servir como um isqueiro sem gás. De alguma forma, tudo funciona, tudo serve. Menos a certeza e a aplicação delimitada dos verbos.

Eu digo umas frases e acho elas bonitas depois. Não de forma consciente. Não penso a posição de cada palavra ou a ordem em que organizo o pensamento. Só acontece. Quando digo, por exemplo, “tenho dois isqueiros azuis”, como eu falei pra ela ontem, achei bonito assim que acabei de falar. Talvez só eu ache bonito. Provável que sim. E tudo bem. Não posso fazer nada. Aí me apontam o mar, a lua cheia, o entardecer avermelhado e o amanhecer alaranjado e, ao mesmo tempo que apontam, dizem “olha que bonito”, e eu não vejo nada além da natureza fazendo aquilo que ela tem que fazer. O céu ganha uma cascata de cores específicas a cada estação da mesma forma que o dependente químico pensa em drogas todos os dias para reforçar que não as usará mais. É da natureza. Ainda que desenvolvida ou adquirida a partir de hábitos nocivos. Afinal, com o aquecimento global, nós infligimos ao céu uma nova paleta de cores. As cores que me apontam e pedem que admire podem significar apenas a desesperança de um futuro saudável para os meus netos — como se alguém que não vê beleza no céu fosse projetar esperança no futuro de seres humanos que tem o nascimento baseado em uma mera probabilidade atirada no meio de um texto. Achei isso engraçado. Eu não ri, só achei engraçado mesmo.

Agora, mesmo deixando o isqueiro, o que funciona, sempre no bolso direito da calça, eu insisto em pegar aquele que não funciona. Insisto em pegar aquele que não faz fogo para acender os meus cigarros. Tenho fumado menos. Mas tenho comprado um cigarro mais forte. Não sei se a equivalência entre o nível de nicotina e o intervalo cigarros diminui o dano à saúde. Não sei. Não sei também porque não jogo esse isqueiro fora. Deve ser porque ainda vejo beleza em algumas coisas. Como a frase que eu disse pra ela ontem, e que te contei há pouco. Tenho dois isqueiros azuis. Já não lembro se foi exatamente assim que falei. Continuo achando bonito de qualquer forma. Mas, não, acho que não me livro dele porque sou bem capaz de colocar no lixo, por engano, aquele que ainda tem gás. E eu não quero arriscar. Certeza. Acendo um cigarro.

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