_8 de maio

Sergio Trentini
2 min readJun 23, 2021

Estava em um supermercado. Antes, logo antes, lembro de estar sentado em uma escadaria qualquer e saber que atrás de mim, no degrau acima do que eu apoiava as costas, havia uma cobra jiboia, morta. Eu estava com alguém na escadaria, mas não lembro quem. No supermercado, avistei um caixa livre. Sabe quando tu bate o olho em alguém e essa pessoa é conhecida, não tão conhecida, mas ainda assim conhecida e mesmo assim está diferente de alguma forma? Então, ela estava uns dez anos mais nova. Era a Patrícia, a secretária do lugar em que eu costumava trabalhar, mas era uma versão adolescente dela. Uma versão adolescente que era caixa do supermercado. Eu tinha voltado no tempo. Ela me reconheceu também. Disse: olha aí, tu não fica devendo nada ao corpo que morreu. Como assim, questionei de volta, já ficando sendo atacado por sensações esquisitas em lugares desconhecidos do meu estômago por minha notória ansiedade.

Como eu não sabia que estava em um ambiente de sonho, as coisas ficaram assustadoras muito rápido. Eu tinha morrido, então. Porra, eu não queria morrer.

A Patrícia não respondeu a minha pergunta porque a sua versão mais velha, a que eu conhecia, chegou em seguida, por trás de mim e, colocando a mão no meu ombro, advertiu a primeira a não falar sobre o assunto. Ele não sabe disso ainda, ela explicou para a adolescente.

A adolescente entrou em polvorosa ao mesmo tempo que eu entrei em parafuso. Ela se agitou na cadeira do caixa do supermercado e pediu, praticamente suplicou a sua versão adulta, para contar, pelo menos, como eu ia morrer.

Conta logo!, eu quase gritei.

Não pode, Patrícia, disse a Patrícia mais velha.

Ah, mas é tão inusitado. Ele vai gostar! Eu preciso contar!

Não, tu sabe que a gente não pode.

Tá, posso contar pelo menos o dia?

Hm. Acho que o dia sim. Não tem problema. Pode contar o dia, sim.

Dia 8 de maio!

Mas como??

Então, ela não se aguenta e rapidamente despeja quase se rindo:

Um raio. Tu vai correr para ir até o mercadinho buscar café e um raio vai te matar!

Ah, é verdade, eu digo, como se já soubesse. De repente, eu já sabia. É mesmo. 8 de maio. Como eu pude esquecer?

Acordo.

Abro o Facebook. A Patrícia morreu de COVID-19 há dois dias.

Devo ter visto antes de pegar no sono. Só pode. Vou até a cozinha. Melhor passar um café e me afastar desse ambiente onírico o mais depressa possível.

Acabou o café.

Tudo bem, vou até o mercadinho.

Está chovendo.

Olho o calendário do celular.

23 de junho.

_______________

Assina a newsletter: https://www.getrevue.co/profile/sergiotrentini

--

--